domingo, 18 de fevereiro de 2024

O SANTO - Um conto estranho

 


“É preciso que se saiba que, tudo o que vemos ou pensamos que vemos, não passa de um sonho dentro de um sonho”.  Edgar Allan Poe
Quando conheci o professor Serafim, ele já não estava mais em seu perfeito juízo, como diriam alguns, mas ao vê-lo naquela situação de aparente demência senil, percebi o quanto estavam enganados. O que ele me contou, em segredo, ficou escrito aqui neste caderno, para que sirva de advertência para os descrentes, embora saibamos que muitos não levarão a sério, até que seja tarde demais.

 
O professor Serafim era um homem de muito estudo, digno de respeito e estudioso das filosofias, religiões e línguas antigas. Agnóstico, sem, no entanto, se rotular ateu, considerava inútil discutir temas metafísicos, pois são realidades não atingíveis através do conhecimento. Para ele, a razão humana não possui capacidade de fundamentar racionalmente a existência de Deus. Talvez por essas razões, algum aluno religioso, deixou com ele aquela pequena estatueta - da qual contarei em seguida - pois sabia que a curiosidade dele era bem maior do que qualquer outra coisa, pois o ensino da filosofia não precisa ser complexo, nem intricado. Tem a ver com curiosidade, a mania de fazer perguntas e de querer saber mais, como diria Jean-Jacques Rousseau: “Só se é curioso na proporção de quanto se é instruído”.

Foi numa tarde de sábado que o professor Serafim chegou a sua casa e encontrou ao pé do portão, uma pequena estátua, cuidadosamente esculpida em madeira maciça, tendo a aparência de um santo católico. Intrigado, o professor Serafim que não era dado a superstições das religiões, muito menos da Católica, embora as estudasse por puro academicismo, levou consigo, mesmo assim, o pequeno artefato, que media mais ou menos dez centímetros de comprimento por cinco de largura. A pequena imagem tinha a aparência, como oportunamente dito antes, de um santo católico.

O ícone de aparência bem antiga representava cuidadosamente talhada em um bloco de madeira, a figura de um rapaz paramentado com uma veste eclesiástica, semelhante a uma sotaina própria de diáconos, presbíteros, bispos e seminaristas. Ele observou que a veste possuía os 33 botões de alto a baixo, representando a idade de Cristo, e cinco botões em cada punho, representando as cinco chagas de Cristo. Havia ainda, uma faixa à cintura, de cor preta com um colarinho branco. O preto representando a morte para o mundo, e o branco, a pureza, segundo o Codex Iuris Canonici, bem entendido.

Observou ainda, o professor Serafim, que o rosto da imagem mostrava os olhos revirados em agonia, embora a boca tivesse um estranho sorriso, como se experimentasse ali um prazer lascivo, quase sádico. No entanto, o que mais o impressionou, foi uma corrente feita de ferro que se fundia com a madeira, que acorrentava a estátua em forma de cruz. O jovem rapaz representado na escultura tinha ainda as mãos violentamente amarradas para trás, tão bem esculpido, com tanto esmero, que dava para ver os pulsos dilacerados.

No dia seguinte, o professor levou a pequena estátua para um padre que era bastante versado em hagiologia e hagiografia, a fim de identificar quem estava ali representado na escultura, já que ele não conseguira encontrar nenhuma semelhança com alguns santos católicos que ele conhecia.

Nota: o professor teve a leve impressão de que a estátua estava um pouco maior do que o dia anterior, mas não se deu ao trabalho de conferir o tamanho e não levou mais em consideração.

O hagiólogo ficou espantado e eufórico com a estátua. Era realmente uma obra de arte digna de Michelangelo. Os detalhes eram impressionantes. Realmente parecia ser uma escultura de um santo católico desconhecido até então para ele e não havia nenhuma inscrição que o identificasse. Concluiu que deveria ser um mártir, mas sem certeza alguma.

Porém, num rápido exame, o sacerdote percebeu umas ranhuras na parte inferior da estátua que, na verdade, observou o professor Serafim, não eram ranhuras, e sim, uma espécie de escrita, muito semelhante à língua Acádia. O acádio (lišānum akkadītum), também conhecido como acadiano ou assiro-babilônio  era uma língua semítica da família afro-asiática, falada na antiga Mesopotâmia há mais de 2.500 anos antes de Cristo, particularmente pelos assírios e babilônios, o que era muito estranho, pois, naquele caso, a adoração de santos católicos só ocorreu por volta do ano 155, depois de Cristo, com o suposto martírio do bispo Policarpo de Esmirna. A língua Acádia já estaria extinta há muitos séculos e com certeza, não seria um artefato católico e sim babilônico. Porém, as vestes eclesiásticas da estátua e a corrente em forma de cruz eram sim, de culto politeísta católico, o que se sugeriria ser um objeto falso. Algum tipo de fraude arqueológica, tais como a Tiara de Saitafernes e a múmia de Rhodugune.

Um dia depois, o professor Serafim percebeu com grande susto, que a estátua estava o dobro do tamanho desde o dia quando a encontrou. E nos dias que se seguiam, parecia que dobrava de tamanho cada vez mais. O professor passou então a ter sonhos inquietantes, noites mal dormidas, insônias intermináveis. A imagem parecia possuí-lo. Dizia que a estátua lhe recitava poemas a noite toda em uma língua antiga e ininteligível. Impedia-lhe o sono e clamava, varando a noite toda: traduza-me!

Conta-se que o professor Serafim entrou em profunda depressão, abandonando o trabalho e a convívio social, se fechando no escritório por dias e semanas inteiras.

Uma senhora que fazia a limpeza da casa do professor, relatou-me certa vez, que podia ouvi-lo discutir com a alguém até altas horas da noite. Ela não estranhou muito, pois era comum o professor receber visitas de alunos e professores que ficavam por horas debatendo sobre assuntos de seus estudos. Muitas vezes, porém, permanecia em silêncio por dias a fio, até que um dia saiu do escritório muito abatido, com aparência doentia, o olhar frio, uma irremediável amargura de espírito, mas, no entanto, percebia-se um radiante sorriso no rosto.

- Traduzi, enfim, o cuneiforme, embora não possa me comparar a Henry Creswicke. – disse-me sorrindo, no dia em que o visitei, pois eu estava muito preocupado com sua saúde mental.

Logo eu quis saber do que se tratava a inscrição.

O professor mudou o semblante e pôs o dedo na boca, pedindo silêncio. Chamou-me a um canto, sussurrando, como quem conta uma travessura.

- Fale baixo! Ele pode nos ouvir. – segredou-me com os olhos úmidos e rutilantes.

Naquele momento tive dúvidas de que o professor Serafim estivesse em pleno uso de suas faculdades mentais. Ele pediu que entrássemos no escritório e, em seguida, fechou a porta com chave atrás de mim. Havia uma estátua do tamanho de um homem. Estava paramentada com vestes eclesiásticas, como um sacerdote. Notei que as correntes estavam arrebentadas no chão.

Ainda curioso, perguntei ao professor do que se tratava a tal inscrição acadiana.

- William Shakespeare estava certo quando escreveu que “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”! A existência de uma consciência suprema já havia sido percebida por Hermes Trimegisto! A Física Quântica já comprovou e registrou na teoria onda-corpúsculo que todo átomo é composto de matéria e energia. A chave está no Sefer Yetzirah: "Em trinta e três caminhos maravilhosos da sabedoria legislou YAH YHWH dos Exércitos”! – Bradava o professor eufórico.

- Professor, e a inscrição, o que dizia? – perguntei, agora já assustadíssimo!
- Você quer saber o que estava escrito na língua Acádia? Pois bem, não lhe direi simplesmente, vou fazer-me parte dela!

O professor Serafim foi até a estátua do santo e entrou nela, encerrando-se a si próprio. Senti um torpor, uma sensação nauseante, um transe cataléptico. A minha visão foi desvanecendo, sentindo esvair-me a vida e tomado de pavor, ainda pude ouvir as últimas palavras do professor:

- A inscrição dizia, LIBERTE-ME!

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