domingo, 18 de fevereiro de 2024

O CORONEL E O MENINO

 



Vô-le contá um causo assucedido lá pras banda dos Inhamuns, no interior do Ceará. O causo é o siuguinte e o siuguinte é eche:

Uma feita, vinha um pade em riba duma burrinha já cansadinha da viagem. Os dois, o pade e a burra, a burrinha e o pade, viajavam debaixo dum sol que era tão quente que nem brasa acesa, que nem fornalha.

O CORONEL E A BARATA

 



Lá no sertão, naqueles tempos, tinha um coronel muito do estribado dos cobres, dono de muitas terras a perder de vista, muito proseador, sabe-tudo, bravateiro até o meio das canelas. Orgulhoso e valentão que nem o Mata-Sete. Só porque tinha dinheiro metido nos cós, ele achava que mandava em todo mundo. E mandava mesmo.

Num tinha nada que ele num soubesse. Metia o bedelho em tudo o que não lhe dizia respeito, ralhava com tudo e com todos, dava palpite até nas coisas das mulheres. Porque tem assunto de mulher que os homens num entende nem que a vaca tussa, mas o coronel, esse sim, sabia de tudo. Num tinha um assunto que ele num botasse a colher.

O LAMENTO ATRAVÉS DA JANELA

 


Como fazia todos os sábados, lá pelas onze horas, onze e meia, o velho advogado chegava ao bar  e sentava numa mesa - quase cativa - bem em frente à janela, de onde se podia ver, com folga, a praça da Matriz. O dono do bar, seu Alfredo, gostava dele. Servia-o sempre o mesmo: uma garrafa de zinebra do Conde, “Gato Preto” e uma porção de queijo com azeitonas. Como aquele horário tinha pouco movimento, ele e seu Alfredo conversavam sobre quase tudo: mulheres, futebol e política, principalmente.

À medida que o bar ia enchendo, a mesa do velho advogado ficava repleta de gente, amigos e conhecidos que lhe vinham cumprimentar e ali, muitas vezes, entabulavam conversas e debates político-filosóficos que varavam toda a tarde.

A MENINA - Uma história insólita


Um homem sentado no banco da praça, absorto com o seu jornal, não se deu conta quando aquela mulher se aproximou dele, sorrateira, com um bebê nos braços e de mãos dadas com ela, uma menina de pouco mais de cinco anos. A mulher tocou-lhe suavemente no ombro dele e disse em voz definhada e meio rouca:

- O senhor poderia olhar essa menina, enquanto eu vou até aquela farmácia? – Apontou para o outro lado da praça, estendendo a mão mirrada.

O RETRATO

 




Minha tia tinha segredos. Ela guardava cuidadosamente embrulhado em um delicado tecido rendado, um retrato emoldurado dentro de um baú velho, passado à sete chaves, escondido debaixo da cama. Ninguém, nem mesmo o marido, meu tio, sabia de quem era a dita foto emoldurada que ela venerava com tanto afinco.

Meu tio não se ocupava sequer em querer saber de quem era a foto misteriosa. Era um homem que lidava com o gado e passava a maioria do tempo dentro dos currais e dos estábulos, não se interessando por caprichos de mulheres. Ele até fazia troça com aquela história.

- Deve ser a minha foto pra espantar as muriçocas! – Dizia galhofando, em estrondosa gargalhada.

O SANTO - Um conto estranho

 


“É preciso que se saiba que, tudo o que vemos ou pensamos que vemos, não passa de um sonho dentro de um sonho”.  Edgar Allan Poe
Quando conheci o professor Serafim, ele já não estava mais em seu perfeito juízo, como diriam alguns, mas ao vê-lo naquela situação de aparente demência senil, percebi o quanto estavam enganados. O que ele me contou, em segredo, ficou escrito aqui neste caderno, para que sirva de advertência para os descrentes, embora saibamos que muitos não levarão a sério, até que seja tarde demais.

AGORA TE VEJO

 

Eu era estudante de enfermagem e vez por outra, prestava serviços em ambulatórios e clínicas médicas, a fim de ganhar um extra.


Havia um médico muito conceituado que requisitou meus serviços e, naquele fatídico dia, no instante momento em que entrei no consultório dele, deparei-me imediatamente com um jarro em cima da mesa.

Olhei mais de perto e vi uma espécie de planta, talvez um cacto, talvez. A planta tinha crescido e as folhas estavam sobre os seus papeis, enroscando-se sobre as coisas.

TRAGO O SEU AMOR DE VOLTA

 

A mulher, de uns tempos para cá, passou a frequentar fervorosa e assiduamente, as vigílias na igreja. Quando não era um retiro espiritual que durava a semana inteira, era o Ofício da Imaculada, varando as madrugadas. Noutras vezes, era a novena da Nossa Senhora do Não-Sei-O-Quê, novenas e mais novenas, vigília de oração pelas famílias, etc., etc.


- O padre disse que vamos ficar enclausurados para rezar o terço pela paz mundial. – dizia ela ao marido.

Paz mundial, coisa nenhuma! Foi em um desses retiros madrugadas adentro que ela conheceu um diácono que a seduziu entre terços, vigílias e rezas. Ela estava mesmo era nos braços de um negro banto de olhos melosos, bonito, viril e cheiroso, que a curou de todos os males e a levou consigo encantada, como num conto de Grimm.

A VISITA

 

Numa meia-noite, insone, agonizava em sono arrebatado e inconcluso. O olho arregalado, aberto como crateras, procurando repousar nalgum recôndito escuro do quarto, sofrendo como um condenado no corredor da morte, a angústia da última noite.


Ouvi então o bater da porta. Batidas insistentes, tão fortes, que pareciam ser de cem pessoas em desesperada aflição.

“Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isto, e nada mais".

Tentei dormir, mas as batidas batiam e insistiam cada vez mais fortes e mais fortes. Aborrecido pela insônia que já me perdurava por meses sem fim, levantei tropeçando nas coisas, caindo nos vãos escuros, nos abismos ancestrais das escadas.

O PALETÓ MARROM

 

Firmino, o alfaiate, acordou sobressaltado com aquele sonho. Não que tivesse sido um pesadelo, mas um daqueles sonhos repetitivos, sufocantes e intermináveis. Varou toda a noite tendo o mesmo inquietante sonho.


Na manhã seguinte, contou para a esposa o que tinha sonhado, enquanto ela lhe preparava o café.

- Essa noite sonhei de novo com uma mulher que chegava e me trazia um pano de cor marrom para que eu fizesse um paletó. Dizia que tinha que ser com urgência e então ia embora. O que será que significa? Já faz um bom tempo que eu tenho a impressão que sonho com isso toda a noite.

O PRETO QUE QUERIA SER BRANCO

 

O preto entrou na tenda da cigana. Ele era de raça preta subsaariana, quase azulada, banto de cor e alma. Os olhos sanguíneos, vermelhos, denunciavam-lhe a descendência racial direta dos quilombolas.


Essa cigana era considerada uma mulher de poderes fenomenais e extraordinariamente assustadores dignos de Fausto. Tinham já feitos prodígios demoníacos, sentenças devastadoras, feitiços deslumbrantes. Conhecia o submundo da magia negra e era praticante dos mais recônditos e infernais segredos do Vodu e da Santeria. Diziam até que ela era uma bruxa fugida de Salém. E era bem possível que assim o fosse.

A VOZ DO ANJO

 


"Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olhará de volta, para dentro de ti". (Friedrich Nietzsche)

 

Conta-se que, há muito tempo, um homem inescrupuloso dizia ter o dom da cura.

Falava que podia curar qualquer doença e fazia disso o seu meio de vida. Tinha fama de benzedor e curador. Garantia enxotar água-nas-juntas, algueiro, alôjo e antójo, somente com um sopro. Era só fazer o sinal da cruz e salpicar umas gotas de água benta que curava barriga farosa, berruga, bicheira de vaca, bicho de pé, boqueira, bucho quebrado e caduquice. E ganhava muito dinheiro com isso.

O CASTELO



 Tinha chovido a noite toda. Deu até pra ouvir o ribombar dos trovões. O clarão dos relâmpagos alumiava até o alto da serra da Guaramiranga, estremecendo o chão, que dava até medo.

Logo pela manhã, bem cedinho, Zé já estava de pé, respirando com satisfação o cheiro da terra molhada e a vista descansava só em olhar para o verde da mata. Nuvens carregadas coroavam o cume da serra e as formigas de asa saltitavam aqui e ali, fazendo a alegria das galinhas e dos capotes no terreiro. Mariazinha, a mulher de Zé que estava barriguda, já estava ali no fogão à lenha fazendo o café e as tapiocas de coco. O cheiro gostoso invadia a casa toda.

- Eita, Mariazinha! Vem mais chuva por aí... – disse apontando pra serra azul. Vô apruveitá e construir o nosso castelo lá debaixo daquelas carnaubeiras.

- É bonito, lá. Vem tumá o teu café primeiro, hôme! As tapiocas tão bem quentinhas! – disse ela satisfeita, varrendo as formiguinhas espalhadas pra tudo quanto era canto da casa.

O fato é que o Zé tinha visto um castelo numa revista, quando um dia ele foi a Fortaleza resolver umas coisas. Era um castelo na Europa e ele botou na cabeça que ia construir um castelo igualzinho àquele da revista. Afinal Mariazinha era a princesa que ele sonhara. Moreninha de olhos verdes e bonita que só a gota serena! Eita morena bonita! E ainda estava esperando um filho dele.

Deu-se que um dia ele terminou de construir o castelo. Chamou Mariazinha pra ver e ficaram ali por um bom tempo, de mãos dadas, satisfeitos, admirando a construção.

- Eita, que ficou bonito, Zé!

- Eu num lhe diche que um dia ia terminar? Eu pintei ele todo de azul, que é pru mode Deus nosso Sinhô abençoá a gente lá de riba das nuvens... e ainda coloquei umas bandeirinhas brancas, tá vendo?

Mariazinha assentiu e sorriu, segurando o neném num abraço. Zé também abraçou os dois ternamente. Mariazinha já tinha parido e já tava de novo com a barriga cheia, pois o Zé queria ter uns dez filhos, que era como ele dizia, “... os meninos era pru mode ajudá na lida do roçado e as meninas pra encher a casa de rosas e ajudá a mãe na lida da cozinha”.

Nuvens carregadas coroavam o cume da serra. Um vento frio soprou de mansinho anunciando que ia chover naquela noite. Entraram e fecharam a porta do castelo.

Quem passava lá no alto da estrada, via no meio das carnaubeiras, uma casinha de taipa, pintada toda de azul. E no varal, panos brancos esvoaçavam no quintal.


DONA GORDA


“Aquele que conheceu apenas a sua mulher, e a amou, sabe mais de mulheres do que aquele que conheceu mil”. (Leon Tolstoi) 


Dona Gorda tinha uma quitanda na feira-livre. Todo sábado, bem cedinho, mal o sol nascia, ela vinha toda faceira, cheirosa, rechonchuda, sorridente, abarrotada de mercadorias. 

- Fruta, verdura, legume! Êita melancia bonita! – apregoava. 

Tinha a voz forte, bonita. Não tinha quem não ouvisse Dona Gorda oferecendo a mercadoria. Também não tinha ninguém que não gostasse dela. Todo mundo falava bem dela. Ajudava a todos na feira. Sua simpatia contagiava a todos. Comentava futebol, novela, política, contava piada e sorria o tempo todo, sempre jovial com o sorriso franco e acolhedor, de bem com a vida.

“É mais fácil obter o que se deseja com um sorriso do que à ponta da espada.”, disse uma vez Shakespeare. 

Dona Gorda contava já com seus quarenta e poucos anos. E quem disse que aparentava essa idade? Gordinha desde quando era menina pequena, nunca se deixou levar por essas modernidades, essas leviandades, esse negócio de fazer dieta, esse negócio de que mulher tem que ser magra pra ser bonita. Vaidade não tinha não. Só se arrumava e se perfumava pro marido. 

Era casada com o seu Chiquinho da Barbearia e com ele vivia muito bem, sem nunca ninguém ouvir nenhuma queixa dela. Sempre foi um bom marido e ela sempre era muito dedicada a ele. 

- O meu Chiquim me acha bonita do jeito que eu sou assim mesmo, gordinha. – comentava orgulhosa, sorridente e cheirosa como uma manga rosa. 

Ah, mas tinha uma coisa, só pra não ser tudo perfeito. O povo diz que de vez em quando o Diabo, invejoso do jeito que é, sempre bota o rabo no meio dos assuntos dos outros. E foi assim que se deu: o seu Chiquinho da Barbearia não era coisa nenhuma esse marido perfeito, como a Dona Gorda pensava que era. Não é que o cabra safado era frequentador assíduo na Pensão da Dona Fulô? Raparigueiro e mulherengo que só a peste, tinha até filhos com outras mulheres por aí. Bebia e se gabava no bar do seu Antônio: 

- Hoje vô lá na Pensão da Fulô. Chegaram umas meninas novinhas, lá. Tem até uma japonesinha que eu tô doido pra abufelar! Diz que é até virgem! Hoje tô com o cobre, tô estribado, doido pra gastar! – disse tomando um gole de cachaça e fazendo uma careta. 

- Um hôme num deve faltar com o respeito com a esposa, seu Chiquim! O sinhô é casado na Lei da Igreja. A Dona Gorda merece respeito e muito. O que Deus ajunta ninguém separa e o que Deus separa num se ajunta mais! 

- Ôxente, Chico Gato! E quem foi que pediu tua opinião? Vá pra baixa da égua, vá! Quem sabe da minha vida sou eu! Ora, mas num tô dizendo mermo! 

Chico Gato era um vaqueiro grande, vinte e poucos anos, alourado, corado de sol da lida com o gado. Tinha assim uns olhos amarelados, igualzinho a olho de gato e por isso o apelido. 

- Tô só lhe avisando, seu Chiquim. Respeite sua muié que ela é uma pessoa muito distinta e o sinhô tá enganando ela. Cuidado que inda é tempo! 

O seu Chiquinho da Barbearia se levantou de uma vez e partiu pra cima do Chico Gato, pronto pra briga. O vaqueiro se afastou, olhou em volta assim com os olhos amarelos, tomou um gole de cachaça, deu uma cusparada e saiu já montando no cavalo. O pessoal segurou o seu Chiquinho, que exasperado, bufava de raiva como um touro brabo. Mas o pessoal do bar sabia que o vaqueiro grandalhão tinha razão. Dona Gorda não merecia ser enganada. Ela era uma boa pessoa. Todos gostavam dela. Mas o seu Chiquinho não estava nem aí pra opinião do povo. Passou a tarde toda na Pensão da Dona Fulô bebendo e gastando dinheiro na companhia das fuampas. 

No sábado seguinte, dia de feira-livre, ninguém viu Dona Gorda abrir a quitanda. Ninguém ouviu a voz dela. A feira ficou em silêncio. Todo mundo sentiu falta daquele jeito sorridente, toda rechonchuda, faceira, apregoando suas frutas e verduras, cheirosa como uma manga rosa. 

- Dona Gorda tá doente? Não vem hoje? – se perguntavam uns aos outros, tristes, desapontados. – Ninguém sabia porque diachos Dona Gorda não tinha vindo naquele sábado, como fazia há mais de trinta anos. A feira não seria mais a mesma sem aquela voz forte, sem as gargalhadas gostosas que só ela sabia dar. A feira nunca mais seria a mesma sem a Dona Gorda. 

Quando deu meio-dia a notícia já tinha se espalhado por toda a cidade. Alguém contou pra ela o que o seu Chiquinho da Barbearia andava fazendo às escondidas. Contaram tudo mesmo, tintim por tintim e ela foi até a Pensão da Dona Fulô saber se era verdade e pegou justamente o cabra safado no quarto com uma rapariga. Uma não! Eram três raparigas de uma vez só com ele na cama, nus e bêbados como gambás. Ela saiu de lá em silêncio assustador. O seu Chiquinho da Barbearia, quando se deu conta da merda que tinha feito, já era tarde. Quando chegou em casa só encontrou tudo revirado. Dona Gorda já tinha feito as malas e ido embora. 

No bar do seu Antônio era a conversa do momento. Todo mundo dava uma opinião. Pra cada um tinha uma versão diferente do acontecido. 

- Diz que ela foi simbora com aquele vaqueiro grandalhão, dos zói amarelo, o Chico Gato. O seu Chiquim tá lá na barbearia, todo liquidado, chorando pela Dona Gorda, que nem um bezerro desmamado. Agora num tem mais jeito! Nem mel nem cabaça! 

É a mais pura verdade: O que Deus ajunta ninguém separa e o que Deus separa não se ajunta mais. 


AS CORRENTES DA PAIXÃO


Quinquinha era uma pretinha alforriada e já contava com seus dez anos de idade. Tinha o cabelo pixaim, as pernas finas, os olhos e o bucho grande. Ela parecia mais com um boi de melão-caetano, dois palitos enfiados num sabugo, dois cambitos segurando um caçuá. E não era bonita, não, a pobrezinha! A pretinha ainda era feinha que dava dó. Era mais feia do que indigestão de torresmo. Cresceu ali mesmo na casa grande e desde pequena já ajudava na lida da cozinha. Mesmo alforriada pela Lei do Ventre Livre, aprendeu cedo o que era o trabalho escravo na fazenda. Mas era feliz. O patrão, dono da fazenda, apesar de ter muitos escravos, era um homem de ideais abolicionistas e não se presenciava ali o maltrato com os pretos, como ela ouvia falar. Mas não era bem assim.

O filho do patrão tinha quase a mesma idade da pretinha e herdara talvez do avô, que era português, a índole escravocrata e era dado a humilhar os pretos da fazenda. Dizia que a raça preta tinha sido feita para as correntes e para o açoite. Em sua repulsão figadal aos pretos, tinha uma predileção especial em oprimir a pobre Quinquinha, que envolta em sua inocência de criança, aceitava o assédio moral com a parcimônia de um monge. Muitas e muitas vezes, o mancebo divertia-se quando entornava sobre a cabeça de Quinquinha a panela de feijão ainda quente, causando-lhe queimaduras severas. Ainda não satisfeito com a atrocidade, lambuzava o rosto da pobre coitada esfregando-o no chão nos restos que sobrava, entre outras sevícias, sob o olhar severo do pai impotente e envergonhado, mas que nada fazia, além de lamentar as ações do filho.

Por conta desses abusos e da conduta criminosa do filho, mandou-o para a Corte, a fim de estudar. Talvez se emendasse e se tornasse um abolicionista, esperava o pai. Passaram-se então os anos e quando ele voltou, voltou esnobe e afetado. Atormentava-o a iminente possibilidade de a princesa Isabel assinar a abolição dos escravos.

Ao entrar na fazenda, acompanhado por um séquito de serviçais a levar-lhe as dezenas de malas, deu logo de cara com Quinquinha, já moça feita. Estava simplesmente linda, belíssima! Os olhos pretos como jamais vira. Os cabelos pretos trançados caiam-lhe nos ombros. Usava um vestidinho simples de cambraia, enfeitado de laços cor-de-rosa, deixando ver um par de pernas bem torneadas e coxas deliciosas, como ele nunca vira em nenhuma mulher branca nos salões de bailes que frequentava na Corte. Sem esconder o quanto estava surpreso, ensaiou um sorriso. Ela mal olhou para ele. Apenas dirigiu-lhe um singelo olhar sem nenhuma intenção de dar-lhe as boas vindas. A mágoa queixou-se no fundo da alma dela e as humilhações e o horror vieram à tona. Um fio de lágrima brotou em silêncio dos olhos pretos dela. Ele viu e estremeceu. Deixou-se cair numa poltrona. “E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração”. Ali mesmo ele adoeceu. Caiu em desgraça, febrilmente fulminado somente pela paixão e pelo desejo carnal. Naquele momento fora violentamente devastado e sua alma mesquinha foi açoitada e arrebatada para o inferno dos escarnecedores. Os dias e os meses se passavam e ele não pensava mais em nada, a não ser nela. Não comia, não bebia, não dormia. Passava a noite em claro, insone, embriagado pela “fada verde”, a escrever inesgotáveis sonetos de amor, saídos do fundo da alma miserável. Estava acorrentado a ela e nada mais importava. Chamava de amor o que na verdade era só paixão doentia. Queria possuí-la, mas não podia e isso o atormentava no meio da noite, açoitado, como por uma dor dilacerando as suas entranhas.

Prostrou-se numa cama e não mais saiu. Médico nenhum soube explicar o que o afligia. Em seus delírios noturnos, febril, pedia ao pai que ordenasse a Quinquinha que lhe fizesse uma visita, que lhe desse as boas vindas, que lhe dirigisse a palavra, afinal ela era uma escrava! Que a trouxessem acorrentada até ele! Implorava para vê-la e chorava copiosamente e, entre soluços, chamava por ela. O pai resignado e absorto velava o filho desgraçado, já moribundo, miseravelmente jogado sobre a cama em um emaranhado de sonetos, entorpecido pelo absinto e envenenado pelo arsênico, alheio à estrondosa euforia lá fora.

Era 13 de maio de 1888. A Lei Áurea havia sido então assinada no Paço Imperial às 15 horas pela Dona Isabel Cristina, a Redentora.


PAPA JOSÉ

 Sentado na varanda, o velho sertanejo olhou para o curral e viu o pé de ipê todo amarelo, bonito, parado na paisagem seca. Não tinha um pé de vento. Sentiu só o mormaço vindo das coivaras e das capoeiras. Uma tristeza medonha lhe invadiu o coração, também seco, sem esperança. Bebeu um gole da água morna e barrenta, a mesma água que ele dividia com os bichos, afinal era tudo “fi de Deus”, como ele dizia. A mulher dele estava lá, ouvindo o radinho de pilha, acompanhando o conclave que iria eleger o novo papa.

- Êita seca desgraçada! – pensou. Os olhos secos nem chorava. Sofria só de ver os bichos morrendo um a um.

A mulher entrou eufórica. O papa tinha sido eleito. A fumacinha branca tava lá, saindo na chaminé, diziam no rádio. Ele nem se levantou da cadeira. Viu uma fumaça branca rodopiando no terreiro. Era a poeira ciscando no chão seco.

MÃE



Debaixo de um viaduto, no meio de entulhos de construção e sacos de lixo, dividindo com ratos e baratas o tosco casebre feito com caixas velhas de papelão e restos de madeira, abandonado à própria sorte, encontrava-se um homem tremendo de frio e de fome. Estava miseravelmente imundo e doente. Quem o examinasse veria em uma de suas pernas um inchaço que o impedia de levantar, oriundo de algum ferimento mal curado, má circulação ou doença renal crônica, cujo estado inflamatório fora agravado talvez pelas péssimas condições de higiene em que ele se encontrava. Enrolado em jornais, jogado sobre um colchão velho manchado de urina e fezes, febril, delirava, sufocado pelo odor nauseabundo que exalava dele mesmo. Quem passasse por ali, caso tivesse o interesse ou a curiosidade de saber as condições daquele pobre homem, é possível que escutasse suas preces fervorosas, mescladas de arrependimento, vergonha, perdão e palavras desconexas sobre uma imensa riqueza que tivera um dia, há muito tempo, quando era jovem e que perdera tudo quando se entregou ao mundo abominável de prazeres carnais e vícios descomunais.

NÃO-ME-DEIXES


Duas velhinhas, Dora e Dorinha, todo dia, bem de tardezinha, ficavam ali em suas cadeiras de balanço, sentadinhas numa sombreada calçada lá em Quixadá. Proseando, tricotando e vendo a vida passar.

Contavam histórias dos discos voadores que assombrava o povo, de uma menina chamada Mariana que corria de noite pelas ruas de Quixadá e subia na parte mais íngreme da Pedra do Cruzeiro e que pouca gente viu e outras histórias mais que sabiam de cor e salteado e por assim dizer.

A brisa também ia e vinha e ficava ali rodopiando afoita, curiando, à espreita, ouvindo a prosa das velhinhas, querendo também prosear. Volta e meia espalhava folhas na calçada e caçoando delas, entrava na conversa sem pedir licença, lembrando os tempos antigos, ventando recordações...

Dorinha, quando moça, conheceu um rapaz muito bonito que queria se casar com ela e já tinha até pedido a mão dela, mas só que ele queria morar em Fortaleza, pois tinha casa lá e tudo o mais. E tudo o mais.

- E deixar o meu Quixadá? – foi a resposta dela. E não casou não.

Dora que era filha de Maria, devota do Sagrado Coração de Maria, sorriu baixinho com a resposta de Dorinha e por isso também não casou.

Quixadá é um lugar para ficar no coração e não para deixar para trás, assim, sem mais nem menos. E não casou mesmo.

A lua já se ajeitava por cima da Pedra do Cruzeiro e o sol pincelava as nuvens com matizes impossíveis e inimagináveis por detrás da serra do Estevão, tingindo as águas do Cedro de verde, azul, rosa e anil. O vento frio, anunciando a noite, expulsou suavemente a brisa vespertina que prometeu, fustigando no ouvido das velhinhas, que voltaria amanhã, de tardezinha, para prosear e ver a vida passar, nas calçadas sombreadas lá em Quixadá.


A FILHA DO CORONEL

 


O vaqueiro Severino estava apaixonado pela filha do coronel Zé Carneiro. O boato já corria por tudo quanto era canto. Pelo menos era isso o que o pessoal pensava. No bar de dona Rosinha, era só no que se falava.

- O Severino tá é de juízo mole. Se apaixonar logo por quem? Pela filha do coroné seu Zé Carneiro! 

- O fi duma égua só anda agora todo perfumado, escrevendo versos de amor. 

- Se o coroné sabe duma arrumação dessas vai é capar ele! Ora, se vai! 

- E por falar no diabo... 

O vaqueiro Severino entrou no bar. Só se ouvia o povo cochichando. Ele fez de conta que não era com ele e acenou pro pessoal, sorridente, todo perfumado. O cheiro enjoado de leite de rosas misturado com a inhaca da lida com o gado invadiu o recinto, fazendo até cachorro espirrar. 

- Dona Rosinha bote uma aí, que hoje eu vô me abufelar com a fia do coroné seu Zé Carneiro! – Dona Rosinha num gostou nem um pouco e olhou pra ele assim meio atravessado e foi logo desembuchando: 

- Tome tento, hôme de Deus! Cê sabe o que povo da fofocando aí, num sabe? Que vosmicê tá arrastando a asa pra fia do coroné seu Zé Carneiro! Hôme, num se meta com isso não! A fia do coroné seu Zé Carneiro num é pru seu bico, não! Ela é minina fina. É muita areia pro seu caminhão! 

- O coroné num vai deixar a fia dele se misturar com vaqueiro fedendo a bosta de vaca que nem nóis! – completou um outro vaqueiro que tava ali perto. 

O vaqueiro apaixonado nem ligou para os conselhos e saiu todo faceiro, decidido. Não dava a mínima para o que o povo dizia, nem escondia de ninguém que estava apaixonado e apesar das mangofas, ainda dizia que era correspondido. 

Dias depois, o coronel Zé Carneiro pegou o vaqueiro Severino de madrugada fazendo amor com a novilha premiada que ele tinha mandado buscar lá em São Paulo. 

O povo dizia que o sem-vergonha tava todo nu, lambuzado, beijando a vaca na boca apaixonadamente. Parecia um beijo de novela. A baba pegajosa do ruminante escorria pelos cantos da boca do infeliz. 

Só bastou isso pro coronel Zé Carneiro aplicar violenta surra de relho no cabra safado, jurando capar o desgraçado. Se escondendo por trás da vaca que pastava impassível à cena tragicômica, o tarado implorava misericórdia ao colérico coronel que bramia trêmulo o chiqueirador em uma das mãos. 

- Ocê pode inté se abufelar com a minha novilha premiada, seu disgramado! Agora espalhar pra todo mundo na cidade que minha filha é uma vaca, eu não deixo por menos! 

E mais uma vez a chibata estalou nas costas do vaqueiro apaixonado, espirrando sangue e merda, pois o infeliz se cagava a cada golpe do coronel. Dizem que a coça varou a madrugada e no raiar do sol, ainda dava para ouvir os berros do miserável a léguas de distância. 

A vaca ruminando, impassível, olhava a cena sem entender patavina.


UM SEGUNDO EM DOIS MOMENTOS

 


Ao nascer, desde eras ancestrais, cada um de nós traz consigo dois cães interiores. Um é prudente e dócil e o outro é feroz e violento. Vez por outra é travada sangrenta luta corporal até a morte. O cão que vai vencer é aquele que for mais bem alimentado.


Ora, quando Agamenon, decente e recatado rapaz do interior chegou à cidade grande, os dois cães dormiam em profundo e pacífico sono.

Agamenon nos teria dito depois que sua alma se evadiu quando conheceu aquela mulher.

Ele nos contou que estava já no final do último semestre do curso superior e naquele dia cuidava justamente dos preparativos para a colação de grau, que seria uma missa na Catedral e depois uns comes e bebes em um buffet e como era costume dos concludentes, posariam para a foto da turma em frente da Igreja, com seus respectivos familiares. Uma festa singela e bonita.

Naquele dia, eufórico com os preparativos para a festa, afinal iria receber o tão sonhado canudo, depois de estafantes quatro anos de estudo, resolveu tomar uma cerveja em um boteco no centro da cidade. Uma cerveja e nada mais.

Uma bela mulher entrou no boteco e dirigiu-lhe o olhar. Um cão acordou.

Agamenon olhou-a de cima a baixo. Os olhos dele se encontraram com os dela. Agamenon nos confidenciou depois que foi o que mais o tinha impressionado: olhos de tons verde-amarelados, diáfanos, castiços, claros como a água de um riacho. Tais olhos penetralham-lhe o âmago, profundamente na alma. Ela sentou-se ao seu lado, cruzou as pernas suavemente e o concupiscente vestido curto que lhe deixava as coxas nuas, infligiu a Agamenon as mesmas tentações de Santo Antão. Ela perguntou-lhe alguma coisa. Agamenon, ludibriado pelo perfume enganoso da luxúria, disse sim. O outro cão acordou.

Quando conhecemos Agamenon, já quase um ano depois daquele dia fatídico, encontramo-lo no Hospital São José, na ala dos soropositivos em estado crítico, terminal. A festa de colação de grau tinha já ficado para trás há muito tempo. Para ele não houve festa, nem fotos em frente da igreja. Ele adoeceu terrivelmente logo depois do encontro devastador com aquela mulher, quando a deusa falsa da lascívia armou o calabouço e os segundos de prazer e de furor sexual destruíram-lhe os anos que tinha pela frente.

Naquele dia, quando Agamenon encontrou o Demônio, os cães travaram terrível e sangrento embate em sua pobre alma.

Venceu, certamente, o que foi mais bem alimentado.

CARTÃO BOLSA CACHAÇA



Assim como são as pessoas, são as criaturas. Não digo nem que sim nem que não, mas Deus tá vendo a peleja. Um dia a casa cai. Tem coisa que a gente não se acostuma é nunca!

Pois pasmem, meus amigos, com o sucedido. Parece ser uma coisa à toa, mas não é.

Um dia desses, uma sexta-feira, como de costume, larguei meus afazeres episcopais de desentupidor de pia batismal e saí pra Praça da Lagoinha com o intuito de tomar uma lapada na bodega do seu Egídio, hábito contumaz, desde os tempos áureos da UNE. Já dizia Sêneca: “difficulter reciduntur vitia, quae nobiscum creverunt”.

Não sou homem de ouvir conversa dos outros. Longe de mim fazer inferno, mas logo que cheguei ao bar do seu Egídio, refúgio dos cachaceiros e cus-de-cana, logo prestei atenção em dois papudinhos que enchiam a caveira de cachaça, completamente subjugados pela engasga-gato e falavam, na linguagem trôpega dos pau-d’água incorrigíveis, que iriam pagar a cachaçada com cartão.

- Cartão? Égua! – bradei. – Diabéisso! Agora tem cartão pra bob esponja?

Que a curiosidade matou o gato eu já sei, mas fiquei doido pra saber o que o seu Egídio, homem grosso que só papel de enrolar prego iria dizer dessa marmota.

Como é que uns feladaputa desses iam ter algum cartão?

Como eu já tava por ali mesmo, gostando da putaria e já tinha tomado umas talagadas, coloquei foi lenha na fogueira e falei pro seu Egídio que os cus-de-cana estavam planejando dar um checho nele.

- Seu Egídio, os papudim aqui tão dizendo que vão lhe pagar com cartão! – bradei.

- Aí dento! – gritou o grosso do outro lado do balcão – Tão pensando que eu sou as Casas Bahia? Aqui num tem essa história de cartão não, seus baitolas! Acho bom irem logo vomitando a “ceda”!

- Num é isso não, seu Egídio! – falou um deles – nóis vai pagar é com esse aqui, ó!

Quase que eu tenho um troço quando o pudim de cachaça mostrou o cartão do Bolsa-Família. O seu Egídio brilhou os olhos de contentamento.

Passa a senha! – E vocês podem é morrer de coma alcoólica que eu num to nem vendo! E ainda chamo o Samu!

Bebi por conta dos “papudim” e do Bolsa-Família até o cu fazer bico.

Seu Egídio ficou tão satisfeito com a novidade que já mandou fazer um cartaz, avisando aos  manguaceiros, na prateleira das cachaças, dizendo: ACEITA-SE CARTÃO BOLSA CACHAÇA. 


O VENDEDOR DE PEIDO

Conta-nos o escritor barbalhense Tércio de Freitas, em seu livro “A ressurreição de Zé Bonzim“, que existia em Barbalha um personagem um tanto quanto curioso, chamado de “Na Parada”, apelido este decorrente de sua mania de chamar todo mundo de “na paradinha”.

Era um cabra comedor de pequi de quase dois metros de altura, com a força de três homens, que levava a vida a carregar latas d’água de um lado para outro para vender nos tempos de seca braba e para isso, percorria dezenas de vezes por dia, cerca de dois quilômetros sem nem mesmo soltar sequer um gemido.

João dos patos

 

O editor entrou afobado na redação e me chamou. Na sala já estava o Jacaré, velho repórter policial. Eu trabalhava com ele algumas vezes. O chefe, subindo as calças por cima do bucho enorme, foi curto e grosso:

- Tem um doido lá na feira dos Malandros que vende diplomas. Um tal de seu João dos Patos. Vão lá ver se encontram o sujeito. Dêem um jeito de gravar uma entrevista como ele. Mas tudo no maior sigilo. Parece que o cara é metido com gente barra pesada e vocês podem entrar num rabo de foguete. Vão lá e comprem um diploma dele. Taí cem contos pra despesa!

- Comprar um diploma, chefe? – resmungou o Jacaré – Tô doido não! Isso dá a maior cana! Trocado em borracha é peia indo e peia voltando! A gente devia era tomar esses cem mirréis de cachaça.

A crônica do abuso

 



Abud abriu os olhos. Havia um homem de costas para ele, sem nenhuma roupa, que exasperado, parecia falar ao telefone. Tentou sair de onde estava e percebeu que estava atado com correntes a um estrado de madeira. O corpo todo lhe doeu quando fez outro esforço. Aos poucos, sua visão foi se acostumando com o ambiente e descobriu, enfim, onde estava. Viu os cadeados que lhe prendiam às correntes e ao estrado. As travas de madeira que lhe tolhiam os movimentos das pernas. As presilhas de ferro nos dedos dos pés, como se fossem anéis parafusados na madeira, rasgando a carne. As algemas nos tornozelos que se fechavam a cada movimento. Moveu um pouco a cabeça para um lado e descobriu que também havia um colar de ferro que lhe apertava o pescoço por meio de um parafuso. Tentou falar, mas o colar de ferro lhe sufocou mais ainda. Os lábios estavam em carne viva. Sentiu sede e fome.

RUA TIJUBANA


“Tempos críticos, difíceis de manejar”. O velho Arimatéia sentou-se. Lembrou já ter ouvido essa sentença em algum lugar. Eram exatamente esses tempos que ele estava vivendo agora. Difíceis de manejar. Estava cansado, exausto, perplexo. Já completara 75 anos, mas não se sentia tão velho assim. Era forte e saudável, apesar da idade. Afinal, quando criança, fora bem alimentado com o leite e o queijo de coalho da fazenda, batata-doce, coalhada, rapadura, carne de criação. Teve como poucos, uma infância feliz e com fartura. O pai, que de profissão era abatedor em matadouro, criava suínos e, um dia, querendo iniciá-lo na arte do açougueiro, o incentivou a abater um leitão. Foi horrível. A cada machadada, o porco soltava os mais terríveis e angustiantes gemidos que alguém já ouvira. Dizem que se um animal estiver sendo abatido e houver uma pessoa chorando por ele, ele demora mais a morrer. E foi o que aconteceu, mas, enfim, o pobre animal caiu por terra, ensangüentado, e Arimatéia, sentiu a vida do bicho esvaindo-se pela lâmina do cutelo. Seu corpo todo se estremeceu e ele percebeu um vulto, uma mulher, passar ao seu lado, com um vestido negro, como se fosse feito do pano preto de um guarda-chuva. Depois do abate, Arimatéia ficou toda a tarde ardendo em febre e jurou nunca mais repetir tal façanha, porém, o vulto nunca mais sairia de sua memória. Nunca mais.

TODOS, NINGUÉM

 Hoje amanheci com frio. Muito frio. Olhei em volta e não vi nada, além da mesma janela que dava apenas para ver uma parte do céu. Havia sempre algo que tomava boa parte da janela e não me deixava ver além, mas eu me contentava em ver o céu. De qualquer forma, para quem está numa cama de hospital, já é grande coisa ver um pedacinho do céu. A essas pequenas coisas, só damos o real valor quando são tiradas de nós, como de mim foi tirada e da forma como foi. O frio estava intenso e pedi que diminuíssem um pouco, mas não me deram ouvidos.

Um homem que era o Diabo




Entre os anos de 1911 e 1915 viveu em Fortaleza um homem estranho, vindo, diziam, do Rio de Janeiro, do Piauí ou talvez de São Paulo. Ao certo não se sabia a sua procedência. As beatas juravam de mãos postas que aquela figura tinha com certeza, emergido dos quintos dos Infernos.

No livro “Fortaleza Descalça”, o poeta Otacílio de Azevedo assim o descreveu: “... era alto, macérrimo, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos e profundos com olheiras cor de azinhavre. (...) Possuía uma particularidade interessante: tinha seis dedos em cada mão, o que lhe aumentava o misterioso aspecto e talvez justificasse o seu comportamento esdrúxulo. (...) Um sentimento de repulsa dele me afastava e me fazia temê-lo, como se ele fosse um monstro daquelas antigas histórias de Trancoso”.

O vendedor

 




“A miséria é múltipla. O infortúnio da terra é multiforme”. Edgar Allan Poe 

Como nenhum outro, ele era um excelente vendedor. Eu disse excelente? Menti. Era excepcional! Já nascera com aquele intuito. Um dom para vender tudo o que lhe propusessem para tal. Qualquer coisa, mesmo! Ambicioso, ávido por lucro, era lépido e astuto. Aguerrido, lançava-se intrépido, diuturnamente, em andanças sem rumo, febril como um explorador em busca de um tesouro. 

Em sua lida diária, não havia obstáculos para realizar uma venda e nunca, em hipótese alguma, aceitava um “não” como resposta a seus reclames. Vendia coisas que tinham um altíssimo valor e coisas supostamente invendáveis, inúteis, supérfluas e enganosas como pirâmides financeiras. Estudava com cuidado o possível cliente bem antes de abordá-lo. Se fosse alguém de posses, chegava à ousadia de oferecer um artigo caro, como um super iate de luxo de 15 toneladas. Dizia-se que era extremamente feliz em seu ofício. Não saía de mãos abanando. Gabava-se, esnobe, de nunca ter perdido uma venda. Sua pasta tinha todo tipo de catálogo dos mais diversos produtos, desde artigos da indústria naval, construção civil, imóveis, equipamentos hospitalares a anúncios classificados de baixo custo.

As histórias do João Cabôco


João Cabôco já morreu faz tempo. Era vaqueiro, cantador de viola e repentista. Vivia metido no meio do mato atrás dos garrotes que se perdiam. Nunca voltava de mãos vazias. Trazia o bicho amarrado, ora pelos chifres, ora pelo pescoço. Falava com satisfação:

- Êita, patrão! Eche deu trabaio, mas eu trouxe o bicho. Tava lá todo ingrenhado nos mato. Ôxente!

PAU DO VÉI


Na região dos Inhamuns, nos confins dos sertões do Ceará, existe uma pequena localidade chamada “Pau do Véi”. Perdida no meio da caatinga, na verdade não passa de um pequeno aglomerado de casinhas de taipa onde pequenos agricultores, castigados pela seca indomável, resistem, resistem, resistem.

O nome “Pau do Véi” é antigo. Dos tempos já idos e esquecidos. Os moradores sequer sabem sua origem. Se perguntados ouve-se uns “sei lá”, “num sei não” e “diabo-é-que-sabe”!

A TERRA


Um homem tinha dois filhos.

Certo dia, um dos filhos olhava pela janela, enquanto tomavam o café da manhã, que era um rico café da manhã. Rico porque tinha cuscuz com queijo, leite fresco, bolo de milho, bolo de batata, tapioca com leite de coco, que era especialidade da mãe, manteiga-da-terra e coalhada e queijo-coalho, além do café puro e quente, que era especialidade do pai, que o preparava antes de todos acordarem, como todas as manhãs.

O GENTILEZA


No início dos anos oitenta eu trabalhava em um antigo prédio comercial na Rua Guilherme Rocha, próximo a Praça do boticário Ferreira, bem no Centro de Fortaleza. 

Embora meu horário de entrada fosse às oito horas, eu chegava lá pontualmente às sete, pois assim dava tempo de tomar um café no Azteca, ponto de encontro obrigatório de jornalistas, publicitários, políticos e madrugadores daqueles tempos.

Na entrada do prédio, sentado junto ao batente, quase que invisível aos transeuntes, trabalhava um distinto senhor, já grisalho, sereno, em uma pequena banca de madeira. Ele vendia cigarros, isqueiros, caixa de fósforos, canetas, ficha de telefone público, guarda-chuvas, baterias para relógios, envelopes e uma variedade enorme de outras coisas.

O CORRUPTO



Certo dia, recebi um telefonema de um vereador aqui de Fortaleza.

- Um vereador? Pensei – Vixe! – Fiquei imaginando se eu tinha feito alguma charge sobre a atuação pífia de algum vereador ou se tinha criticado a administração falida da prefeita de Fortaleza.

Nem uma coisa nem outra. Logo de cara, o sujeito, do outro lado da linha, começou logo a elogiar as charges, dizendo que eu era um gênio do traço, que já era meu fã desde os tempos em que eu publicava no Diário do Nordeste, que já acompanhava a evolução do meu trabalho agora na internet e que queria encomendar umas cartilhas.

Dona Zefinha e o Cão


Zé de Zefinha era um cabra feio que só a peste! Era mais feio do que a palavra Teje Preso. O povo dizia que o cabra era tão feio, que quando nasceu, a parteira ia jogando o desgraçado no lixo. Preguiçoso feito o cão, passava o dia entre uma coisa e outra que a mãe mandava fazer e o fundo de uma rede na varanda do quintal, enfiando peido em cordão. Ele não trabalhava, não tinha amigos e de tão feio que era sequer tinha namorada. Pra dona Zefinha, a mãe dele, não. Ele era feio pros outros. Pra ela, podia até ser meio malamanhado, mas era bonito que só.

TODO CASTIGO PRA CORNO É POUCO


Cornélio era desses homens pequenos, franzinos, tímidos, risinho fraco. Puxava uma perna, andava de cabeça baixa e pouco falava com os colegas de trabalho. Era de corar quando lhe contavam qualquer piada obscena. Muito competente e pontual no trabalho era por isso respeitado por todos na repartição pública. O típico cidadão comum daquela canção de Belchior.“Vivia o dia e não o sol, a noite e não a lua. Acordava sempre cedo, era um passarinho urbano. Era um homem de bons modos: Com licença; foi engano".

De casa para o trabalho e do trabalho para casa. Sair com os colegas para tomar uma cerveja depois do expediente, então, nem pensar!

O CORONEL E O MENINO

  Vô-le contá um causo assucedido lá pras banda dos Inhamuns, no interior do Ceará. O causo é o siuguinte e o siuguinte é eche: Uma feita, v...