domingo, 18 de fevereiro de 2024

As histórias do João Cabôco


João Cabôco já morreu faz tempo. Era vaqueiro, cantador de viola e repentista. Vivia metido no meio do mato atrás dos garrotes que se perdiam. Nunca voltava de mãos vazias. Trazia o bicho amarrado, ora pelos chifres, ora pelo pescoço. Falava com satisfação:

- Êita, patrão! Eche deu trabaio, mas eu trouxe o bicho. Tava lá todo ingrenhado nos mato. Ôxente!

De noitinha, entre uma cantoria e outra, sentava no terreiro, cigarro de palha entre os dedos, a viola de lado e um bule de café nas trempes, fumegante, cheiroso. Gostava mesmo era de contar história de assombração pros meninos da fazenda. “Pru mode os minino se mijar na rede de noite”, se divertia ele. E o povo se reunia em torno dele. Vinha gente de tudo quanto era canto só pra ouvir as cantorias e as histórias. “O João Cabôco vai contar história hoje”! Alardeava o povo na feira. E era cada história! Sabe-se lá onde diabos ele aprendia. Tinha sempre uma história nova que ele garantia que era tudo verdade, que ele tinha ouvido alguém contar, no tempo quando trabalhava como caixeiro viajante, no meio do sertão.

Teve uma vez que ele contou uma história, que começava mais ou menos assim:

"Quando eu era minino réi, meu pai, que Deus lhe tenha na sua Glória, me levava pra chorar os difunto. Eu morria de medo, mas meu pai fazia uma cara dura e me apertava o braço, pra mode eu num fugir. Num vô negá, eu morria de medo dos difunto. Ôxe, se num tinha! Ele dizia assim: Ocê tem qui tê medo é dos vivos, visse? Difunto morto lá faz nada cum ninguém, ôxente!

Aí teve um dia qui ele me chamou. Pois num é que tinha morrido um amigo de nóis, da nossa famía, aí nóis fumo. Quando cheguemo lá, nóis fiquemo lá pra beber o difunto. Minha mãezinha, que Deus lhe tenha na sua Glória, era que puxava o terço das alma penada.

Aí foi que butaro ele na rede pru mode levá ele pro sumitero. E quem foi que pôde levantá o bicho, de tão pesado que era? Num teve hôme que tirasse o hôme de riba da mesa. Foi preciso mais de vinte hôme pru mode levantá o finado. Foi uma agonia da gota, ora se foi! Eu tava lá e vi tudo! Os hôme até pensaro que tinha era pedra dentro da rede véia. E o pior era que o sumitero ficava lá em riba do serrote, umas dez léguas de viagem.

Aí a viúva dixe que era bom chamá a dona Celeste, que era rezadeira daquelas bandas por lá. Aí o povo dizia que não, porque a dona Celeste era mermo era catimbozêra e que tinha parte com o Demo. Mermo assim, chamaro ela e ela dixe assim, pra todo mundo escutá.

- Vamo levá o finado. No caminho pro sumitero tem um pé de juazêro, aí pode dêxá a rede no chão, lá embaixo do pé de juazêro.

Mas isso num pode não, sinhô! No sertão quando a gente vai levar um difunto pru mode enterrar, num se pode parar, de jeito manêra. Pra nada. O morto tem que tá sempre em movimento. Sempre pra frente. Se parar, é desgraça na certa pro dito cujo. Tem que dar sossego depressa pra alma do dizinfeliz, pra o distinto não ficar com raiva, vagando por aí. 

Pois foi, os hôme fizero o que a véia dixe. Quando chegaro lá, arriaro a rede no chão, embaixo do Juazêro e foram descansar, pois o peso era muito... e aí, a véia catimbozêra foi no mato e trôxe uns gaios de espinheira santa , que nasce dendomato, ali mermo e deu de malhar com o difunto, batendo no pobre coitado com os gaios que ela tinha pegado no mato e o povo com os zói tudo arregalado!

A véia continuava a batê no difunto e dizia assim: Ocê priciza de se entregá, orde de Deus é sagrada, tu vai pra donde ele tá te esperando, seu dia é hoje, hoje é o teu dia, priciza de se entregá... e batia, e batia, e batia sem parar...

Pois quando a véia terminô de rezar, os hôme, ficaro espantados e se benzêro. O difunto tava bem manerim, manerim....parecia inté um pau ôco. Só foi preciso dois hôme pra levá a rede do difunto pra mode enterrar. Ôxente!" 


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