domingo, 18 de fevereiro de 2024

UM SEGUNDO EM DOIS MOMENTOS

 


Ao nascer, desde eras ancestrais, cada um de nós traz consigo dois cães interiores. Um é prudente e dócil e o outro é feroz e violento. Vez por outra é travada sangrenta luta corporal até a morte. O cão que vai vencer é aquele que for mais bem alimentado.


Ora, quando Agamenon, decente e recatado rapaz do interior chegou à cidade grande, os dois cães dormiam em profundo e pacífico sono.

Agamenon nos teria dito depois que sua alma se evadiu quando conheceu aquela mulher.

Ele nos contou que estava já no final do último semestre do curso superior e naquele dia cuidava justamente dos preparativos para a colação de grau, que seria uma missa na Catedral e depois uns comes e bebes em um buffet e como era costume dos concludentes, posariam para a foto da turma em frente da Igreja, com seus respectivos familiares. Uma festa singela e bonita.

Naquele dia, eufórico com os preparativos para a festa, afinal iria receber o tão sonhado canudo, depois de estafantes quatro anos de estudo, resolveu tomar uma cerveja em um boteco no centro da cidade. Uma cerveja e nada mais.

Uma bela mulher entrou no boteco e dirigiu-lhe o olhar. Um cão acordou.

Agamenon olhou-a de cima a baixo. Os olhos dele se encontraram com os dela. Agamenon nos confidenciou depois que foi o que mais o tinha impressionado: olhos de tons verde-amarelados, diáfanos, castiços, claros como a água de um riacho. Tais olhos penetralham-lhe o âmago, profundamente na alma. Ela sentou-se ao seu lado, cruzou as pernas suavemente e o concupiscente vestido curto que lhe deixava as coxas nuas, infligiu a Agamenon as mesmas tentações de Santo Antão. Ela perguntou-lhe alguma coisa. Agamenon, ludibriado pelo perfume enganoso da luxúria, disse sim. O outro cão acordou.

Quando conhecemos Agamenon, já quase um ano depois daquele dia fatídico, encontramo-lo no Hospital São José, na ala dos soropositivos em estado crítico, terminal. A festa de colação de grau tinha já ficado para trás há muito tempo. Para ele não houve festa, nem fotos em frente da igreja. Ele adoeceu terrivelmente logo depois do encontro devastador com aquela mulher, quando a deusa falsa da lascívia armou o calabouço e os segundos de prazer e de furor sexual destruíram-lhe os anos que tinha pela frente.

Naquele dia, quando Agamenon encontrou o Demônio, os cães travaram terrível e sangrento embate em sua pobre alma.

Venceu, certamente, o que foi mais bem alimentado.

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